sexta-feira, 1 de abril de 2011

Fragmento inédito - "Degredado" (memórias soltas)

“[Assento em triste peito uma fagulha alegre]

Correntes da memória invadem o pensamento. É como se colhesse fatos suspensos, a existir novamente, quando pegos no ar. Eu me lembro de cada coisa, ouvi algo assim, uma vez, no teatro. Tive amigos nas artes. Gente lembradoira. Diga-me que uma palavra não existe e digo-lhe: paciência, que exista. Lembrar faz-me mais perto de ti. O que não se esquece, existe por mais tempo. Lembro-me de muito antigamente, antes de tudo existir. Lembro-me como quem reconhece odores. Um conhecido sabia  distinguir o cheiro da poeira sob os postes nas ruas, a diferença entre o cheiro de uma barata e um rato. Era pessoa considerada normal (tantos loucos por menos). A ideia dessa sabedoria repugna-me. Eu lembro de coisas esquecidas. Lembro-me daquela noite em que me seguiste, oculta como bandido. Digo: BANDIDA! Você não pode roubar o IN-FI-NI-TO. Odores e lembranças permanecem. [...] As histórias se recontam. Um conhecido tinha uma dessas histórias infelizes mas aceitáveis, virou pesadelo após o requentamento de histórias não  contadas. O menino, antes apenas pobre, preto, homossexual, artista, mãe suicída, após saber-se leucêmico, descobriu ter sido adotado, que a mãe era falsa, uma empregada dos pais verdadeiros que aceitou levá-lo para São Paulo, para bem longe. Um dia, o menino viu a mãe, subitamente, beijar a vizinha na boca. Quando essa vizinha foi embora do bairro foi que a mãe enfiou a cabeça no forno, abriu o gás e morreu.”

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